Promover a solidariedade intergeracional

O crescimento económico, a coesão social, a sustentabilidade, o progresso tecnológico justo são somente possíveis a partir da defesa de um posicionamento em que dar não é sinónimo de abdicar, mas de potenciar.

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Ser-se humano é conseguir construir pontes de sentidos no lugar do instinto animal que, em todas as outras espécies, constitui a motivação dominante para o comportamento. O que nos torna seres conscientes da sua mesma consciência é, por um lado, poder construir planos de vida nos quais definimos objectivos concretos, mas saber também adaptá-los às lógicas dos tempos e às dinâmicas múltiplas de socialização, substituindo o fixismo ou um fazer mecânico sem reflexão. Por outro lado, é vermo-nos numa posição de vulnerabilidade, de honestidade intelectual e emocional, a partir das quais podemos juntar-nos em grupos, cooperar para a sobrevivência e, ao mesmo tempo, colaborar para alcançar uma felicidade que transcende as necessidades vitais. Por isso, se sobreviver é não morrer, viver é dialogar, partilhar. Somos tanto humanos quanto soubermos promover a comunicação, o respeito e a dignidade entre gerações, enaltecendo a solidariedade intergeracional que, na sua ausência, impediria os notáveis desenvolvimentos sociais que a história já fez o favor de registar por inúmeras ocasiões.

Existem vários exemplos desta solidariedade para com o/a outro/a mais novo/a ou mais velho/a que merecem registo. Assisti a um deles no segundo episódio de Planeta A, “Instituições democráticas”, na RTP 1, narrado pelo actor João Reis. Nele, um conjunto de senhoras polacas activistas, que se destacam pela luta contra o nacionalismo e o conservadorismo que consideram violar a constituição do seu país, admite que o faz não por si mesmas — “já somos demasiado velhas” — mas sim pelos/as seus/suas netos/as. Se bem que o combate pela liberdade e pela justiça não vejam fronteiras de idade ou quaisquer outras, o que estas mulheres revelam é sobretudo uma generosidade que, na celeridade dos nossos quotidianos, frequentemente ignoramos ou mesmo menosprezamos, dado que privilegiamos as ambições individuais em detrimento dos compromissos plurais. A solidariedade intergeracional relembra-nos desta responsabilidade que é imprescindível para que nos assumamos como agentes de cidadania capazes de pensar nas outras pessoas e nos demais seres vivos, melhorando as condições de coabitação na nossa sociedade e no nosso planeta.

Um outro exemplo, este muito próximo de nós, portugueses/as, é o 25 de Abril, celebrado este ano ainda há poucos dias. Para os/as principais protagonistas, a Revolução dos Cravos não se fez para assegurar a eternidade da sua heroicidade, porém antes como uma própria constatação da sua exiguidade no tempo. Sabiam Salgueiro Maia e tantos outros capitães de Abril, e os vivos ainda o sabem, que um dia todos/as partimos para uma nova dimensão, permanecendo a história e a cultura nas mãos de quem se lembra e quer continuar a fazer lembrar — nós. As lutas pela democracia e pelas igualdades de género, étnica, sexual, religiosa e territorial não se solidificam no dia, no mês ou no ano a seguir: são construções que, a cada segundo, nos obrigam a repensar um projecto comunitário que é mais elevado que cada um/a, que existe por todos/as e para todos/as, nos laços que fabricamos e nos modos de vida que articulamos como atores sociais.

Para a lei portuguesa, a solidariedade intergeracional é uma questão centrada na esfera ambiental e relativa ao princípio de causalidade que liga o hoje ao amanhã. Por isso se afirma, em Diário da República, que a “solidariedade intergeracional impõe a consideração da dimensão temporal nos procedimentos avaliativos, projectando-se para as décadas futuras, sendo um corolário do princípio da igualdade nesse enquadramento temporal”. Contudo, acrescenta-se a dimensão do direito internacional: “visa[-se] mitigar a discriminação actual entre a qualidade ambiental de que goza a maior parte dos países mais desenvolvidos (o Norte global) por comparação com a acentuada e progressiva degradação ambiental dos países em desenvolvimento (o Sul global).” A partir desta concepção, conseguimos concluir que os pilares desta solidariedade são atravessados por preocupações que vão do carácter ecológico à dimensão política, evidenciando como a fraternidade, um dos três expoentes da Revolução Francesa, pode também ser uma condição de produção de agência cidadã crítica.

O crescimento económico, a coesão social, a sustentabilidade, o progresso tecnológico justo são somente possíveis a partir da defesa de um posicionamento em que dar não é sinónimo de abdicar, mas antes de potenciar, de empoderar. É desta solidariedade intergeracional que precisamos e devemos incentivar se queremos um mundo menos desigual. Nada é mais libertador do que saber que se é diferente na expressão de si próprio/a, mas igual nos direitos.

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